sábado, abril 30, 2005



a memória de ti
me abraça súbita

afoga?

cortante
reabre a ferida
quase cicatrizada

resvalo docemente
no veneno eficaz
sem saída

e eu que pensara
poder driblar o óbvio

como se o corpo se enganasse

silvia chueire

sexta-feira, abril 29, 2005



Há sem dúvida quem ame o infinito
Há sem dúvida quem deseje o impossível
Há sem dúvida quem não queira nada

-Três tipos idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser

ou até se não puder ser...

Álvaro do Campos

quinta-feira, abril 28, 2005



Era assim:

queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
quanto me
queres?
quanto me
desejas?


ah quanto te quero
quando te quero
quando me queres...

Ana Hatherly
um calculador de improbabilidades

terça-feira, abril 26, 2005



Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.
E de novo caminho para o mar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, abril 25, 2005



toma a minha pele nos teus lábios,
o passeio inequívoco,
desiderium.
minhas raízes fincadas na terra,
minhas asas voando ao céu.

toma o que quiseres,
o que não é teu,
nem meu.
mas é nosso,
quando nos olhamos.

silvia chueire

sábado, abril 23, 2005



Afastei-me de ti porque éramos imortais ; voltaríamos sempre um para o outro...

Inês Pedrosa

quinta-feira, abril 21, 2005



Ser talvez
uma folha. Sê-lo-ia se tu fosses
a árvore. Sou
talvez um ramo
no teu tronco. Um ramo
nu, despido,
húmido.
Sou
uma espada
na tua bainha.



Alberto Martins, Três Poemas de Amor

(ed. Quasi, 2004)

quarta-feira, abril 20, 2005



A tua caligrafia povoa as folhas do meu pensamento. Fazes chegar até mim, através de obscuros mensageiros, um voto simples de encontro. Os candeeiros ardem no transporte da noite, os meus olhos gotejam.

Vasco Gato

Não costumo responder a questionários, a não ser que seja obrigada a isso. Neste caso, e porque o desafio partiu daqui, aqui vai:

Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?

Sinceramente? Nenhum.

Já alguma vez ficaste apanhadinha(o) por um personagem de ficção?

Ah, várias vezes!... Lembro-me de ter uma paixão pelo Principe Valente, personagem de banda desenhada dos meus tempos de criança.
Já bem mais tarde, adorei o Baltazar Sete-Sois ( e também a sua Blimunda), do Memorial do Convento. E claro que não se esgotam aqui os personagens que me seduziram ao longo da vida...

Qual foi o último livro que compraste?
A prisão e paixão de Egon Schiele, de Vasco Gato

Qual o último livro que leste?

O voo da Rainha, de Thomás Eloy Martinez

Que livros estás a ler?


A prisão e paixão de Egon Schiele, de Vasco Gato, Sputnik meu amor, de Haruki Murakami e Relacionamentos e ciclos de vida, de Stephen Arroyo.

Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
Só cinco?
Cada vez que vou de férias, por curtas que sejam, vou absurdamente carregada de livros. Isso significa que me seria impossível escolher só cinco.

A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

Não vou passar a ninguém, e apenas porque detesto correntes.

terça-feira, abril 19, 2005



Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade, para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.


Sophia, Livro sexto

sábado, abril 16, 2005



Esta noite sonhei
Que empunhava uma espada contra o meu corpo nu.
Que significará?
Que em breve estaremos juntos.

Kasa no Iratsume, 8th Century

sexta-feira, abril 15, 2005

Casida en la alta madrugada



Quando te acuerde de mi cuerpo,
y no puedas dormir y te levantes medio desnuda
y camines a tientas por tus habitaciones
borracha de estupor y de rabia,
en algún lugar de la tierra

yo andaré insomne por algún pasillo
careciendo de ti toda la noche
oyéndote ulular muy lejos y escribiendo
estos versos degenerados.

Felix Grande, España

quinta-feira, abril 14, 2005



Os deuses celestes são irracionais:
Eu podia morrer sem haver-te conhecido,
a ti a quem amo tanto.

Kasa no Iratsume, 8th Century


Não escutes agora as minhas palavras, não as ouças,
olha o mar, a indolência com que a tarde cai.
Toca nos meus dedos a claridade feliz que entre eles
se furta, o renovar das ondas, impacientes e iguais.
Deixa que o sol te ilumine o coração,
que o seu desdobrado esplendor te cerre os olhos.
Sobre a areia, sente a eterna pegada do cansaço,
o insistente adejar da ternura que une os nossos corpos,
resvalando na pele última do amor.
Tudo o que vezes sem conta te quis dizer,
aquilo que as palavras na sua frágil bainha
não puderam resguardar, proteger, como a criança
o seu recanto de tristeza, está aqui, sob
esta luz, rumoreja rente à brisa.
Quando, numa outra tarde, a tua solidão se reflectir
na espuma, na límpida liberdade que dela emana,
detém-te um instante, contempla o que derradeiro é,
o que outras mãos, num anelo comum, comungaram.
Escuta então, esperançosamente, cada sílaba,
nunca a minha voz se ouvirá mais clara.

Juan Luis Panero, Antes que chegue a noite

quarta-feira, abril 13, 2005



O Paraíso fica além, atrás da porta,
no quarto ao lado,
mas eu perdi a chave.
Talvez não a tenha perdido, só não saiba dela.

Kahlil Gibran, Areia e Espuma



Olhando para dentro de mim...



O pior cego é aquele que não quer ver...

(Ditado popular)

sexta-feira, abril 08, 2005



Volta até mim no silêncio da noite

Volta até mim no silêncio da noite a tua voz que eu amo,
e as tuas palavras
que eu não esqueço. Volta até mim
para que a tua ausência não embacie
o vidro da memória, nem o transforme
no espelho baço dos meus olhos.
Volta com os teus lábios cujo beijo sonhei num estuário
vestido com a mortalha da névoa; e traz contigo a maré cheia da manhã com que todos
os náufragos sonharam.

Nuno Júdice

quarta-feira, abril 06, 2005



Vestido de cavalo e fina seda
e coberto de escamas luminosas
é como se tivesse uma outra idade
(a verdadeira) e o jovem corpo
capaz de atravessar muros e medo.
Inclinarias sobre a minha boca
um nome arrevesado com sabor
a terras estrangeiras visitadas
secretamente, em noite toda escura,
envolto, nu, em glória impermeável.
Vais-me dobrar em dois como se dobra
um dia que passou sem nada dentro,
o velho ardor de nuvens encardidas;
sem ver na minha voz como cantava
ao telefone a sombra da memória
do desejo que dói como um veneno.

António Franco Alexandre (Quatro Caprichos)

segunda-feira, abril 04, 2005



Ardendo de amor, as cigarras cantam:
mais belos porém são
os pirilampos, cujo mudo amor
lhes queima o corpo!

Canções de camponeses do Japão

domingo, abril 03, 2005



Nada é glorioso, nem a solidão
absurda. Só a memória permanece,
para em cada carícia,
ser outra.

Orlando Neves (Odes de Mitilene - excertos)




Se contigo ardo, Safo,
se todas as coisas provêm
da noite, seremos a chama
da eterna beleza.

Orlando Neves (odes de Mitelene - excertos)

Assumamos o corpo e o
prazer, bebamos no elmo
de bronze o vinho e
os cheiros do fogo.

Orlando Neves (Odes de Mitilene-excertos)

sábado, abril 02, 2005

Preparação para a morte



A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito, é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
Tudo é milagre.Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Manuel Bandeira, Estrela da Tarde, in Estrela da Vida Inteira, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1993

sexta-feira, abril 01, 2005



Sonhei tanto contigo,
Caminhei tanto, falei tanto
Amei tanto a tua sombra,
Que já nada me resta de ti.
Resta-me ser sombra entre as sombras
Ser cem vezes mais sombra que a sombra
Ser a sombra que há-de vir e voltar
Na tua vida cheia de sol.


Robert Desnos